quinta-feira, 9 de julho de 2020

A CRIANÇA E O MANGANGÁ, POR EDSON ULISSES.


Quando criança morando no interior, na Ilha do Ouro, município de Porto da Folha, sertão sergipano, era comum ver os mangangás abraçando carinhosamente e beijando as flores, deslocando-se sobre elas, produzindo o barulho de suas asas fortes. Chamava atenção dos que estavam por perto. Certo dia, pela manhã, ao sair de casa, já em outro território, no Mosqueiro, em Aracaju, onde algumas vezes passo os fins de semana, contemplo um cenário que me fez relembrar uma fase saudosa de minha vida, da qual guardo muito vivamente em minha memória. Acho que todos nós guardamos esta fase mágica, a época de criança. Minhas pupilas se dilataram ao ver um mangangá desfilando por sobre as flores de uma planta, cujo nome desconheço, que se enrama sobre o pergolado da entrada da casa. De repente me senti o menino da roça fazendo as traquinices ou, como se dizia, estripulia, próprias da idade.

Lembro-me de quando prendíamos os mangangás em caixas de fósforos. Estes besouros vivem sob as casas de árvores e, para capturá-los, usava as ditas caixas vazias para aprisioná-los. Uma vez aprisionados, ficava ouvindo seu zoar, o barulho que faziam parecendo um avião, como dizíamos, os meninos que participavam dessas brincadeiras. Tínhamos medo de sua ferroada depois que silenciavam e então soltávamos aqueles besouros mangangás que saiam voando, fazendo seu barulho característico.

O que muito nos amedrontava era a possibilidade de sermos picados por aquela abelha gigante, pensando em como poderia ser dolorida uma picada de um mangangá. Só que, na verdade, eles não ferroavam. Eram grandes, mas inofensivos. Nesse enlevo, encaminhei-me para o trabalho sem querer esquecer aquela lembrança que, de repente, apareceu perante meus olhos, já tanto quanto vividos. Como me senti bem retornando no tempo para relembrar uma brincadeira tão singela, tão simples, mas capaz de fazer-me viajar no tempo, retornando à época de criança e da ingenuidade. Este sentimento nos humaniza, retornei a encontrar a criança que todos temos dentro de nós. Tive uma sensação de extrema felicidade lembrando de como eram feitas as brincadeiras, como caçar passarinhos com baladeiras, pôr laços nos seus ninhos, nadar nas lagoas, no rio. No caso, o Rio São Francisco que banha a minha Ilha do Ouro querida. Esse gigante que hoje agoniza, sem forças, arrastando-se em seu leito de morte, antes caudaloso; atravessado de calças arregaçadas pelos ribeirinhos.

Lembro que foi ali, no São Francisco, que aprendi a nadar, sem professor de natação. Era jogado no meio do rio e obrigado a nadar. Ouvindo as risadas dos irmãos mais velhos que observavam a minha agonia, debatendo-me, até aprender. Quando cansava era puxado para fora da água, ofegante após encher a barriga de água. Passou pouco tempo nesse gostoso rememorar; logo estava no trânsito frenético, estressante, até chegar na praça Fausto Cardoso, no Tribunal de Justiça, onde meu computador me espera abarrotado de processos para decidir, julgar sobre a liberdade das pessoas, como desembargador integrante da câmara criminal, debruçando-me sobre a dura realidade de julgador; decidir a sorte daqueles que são acusados da prática de possíveis delitos, enfrentando um duro cenário de uma realidade cruel, com o ônus de decidir o destino dessas pessoas a cumprirem penas, pagarem seu débito para com a sociedade por afrontarem a lei.

PS: mangangá foi cantado por Luiz Gonzaga e por Wilson Simonal, com música do mesmo nome.

Autor do texto: Edson Ulisses de Melo é Desembargador do TJ/SE, ex-Presidente da OAB/SE e da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CF/OAB, ex-Ouvidor Geral do TJ/SE, ex-Procurador Geral do Estado de SE, ex-Vice-Presidente do TRE/SE. Integra as academias Sergipana de Letras; Sergipana de Letras Jurídicas; Propriaense de Letras, Ciências, Artes e Desportos; e Nacional de Economia e Social.

Fonte:  93 Notícias

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