Há cenas que se repetem no Rio de Janeiro como um pesadelo que a gente nunca acorda.
A cada megaoperação, a cidade sangra, o noticiário se repete, os números se atualizam — mas o roteiro é o mesmo. E, desta vez, o capítulo foi particularmente brutal: 64 mortos em uma única operação policial nos Complexos do Alemão e da Penha, no último dia 28 de outubro de 2025.
Entre os mortos, quatro policiais. Homens que saíram de casa para cumprir uma missão e não voltaram. Isso, por si só, já muda o peso da conversa.
A Linha de Fogo
O governo do Rio chamou de “a maior operação das forças de segurança da história do Estado”. E foi mesmo. Cerca de 2.500 agentes da Polícia Militar e da Civil desceram sobre o território dominado pelo Comando Vermelho, com o objetivo de desarticular uma rede que há décadas desafia o Estado — e, muitas vezes, o vence.
Quem já acompanhou a realidade carioca de perto sabe: não há romantismo possível quando o inimigo usa fuzis, drones com explosivos e barricadas. É guerra. E numa guerra, por mais que doa dizer, bandido não se combate com flores.
Os agentes enfrentaram resistência pesada, fogo cruzado intenso e táticas que beiram o terrorismo urbano. Quatro deles morreram. Mais de 80 suspeitos foram presos. Foram apreendidos mais de 100 fuzis, granadas, drogas e munições.
Diante desse cenário, é impossível não reconhecer a coragem de quem entra num beco sabendo que pode sair de lá num caixão.
O Outro Lado do Espelho
Mas o que me inquieta — e deve inquietar qualquer um com um mínimo de senso crítico — é que o Rio de Janeiro parece ter feito da força o único idioma possível.
E, cá de longe, observando tudo isso aqui do norte de Portugal, onde vivo há alguns anos, essa sensação é ainda mais nítida.
Vejo muitos brasileiros — sobretudo cariocas — que se tornaram, como costumo dizer, “exilados do Rio de Janeiro”. Gente boa, trabalhadora, que cansou de viver cercada pelo medo, pela indiferença e pela violência.
Vieram buscar aqui o que o Brasil lhes negou: o direito ao sossego.
E, quando esses mesmos brasileiros olham para trás e veem uma operação com 64 mortos, sentem alívio e tristeza ao mesmo tempo.
Alívio porque o Estado, enfim, reage. Tristeza porque, de novo, o preço é altíssimo.
Entre o Dever e o Abismo
Não se trata de condenar a ação policial. A polícia tem que agir, e agir com força quando o inimigo é armado e organizado. A omissão do Estado também mata.
Mas há uma diferença entre agir com firmeza e agir sem estratégia.
Quando a cada operação o saldo é dezenas de mortos, fica a sensação de que o Estado entra no morro como um elefante em loja de cristal — quebrando tudo, inclusive o que deveria proteger.
O problema não é a operação em si, mas o modelo de combate: episódico, reativo, midiático.
O governador Cláudio Castro aparece diante das câmeras dizendo que foi um “golpe histórico contra o crime”, enquanto o Governo Federal nega ter sido avisado e o Ministro Lewandowski diz que “não recebeu absolutamente nada”.
No meio da guerra de versões, o morro continua sendo o mesmo palco de sempre: onde os pobres morrem, e os políticos se promovem.
A Raiz da Desordem
O Comando Vermelho nasceu dentro de um presídio, no fim dos anos 1970, quando presos comuns aprenderam táticas de guerrilha com presos políticos da ditadura. O crime se organizou com método, disciplina e hierarquia.
O Estado, ao contrário, nunca aprendeu a se organizar.
Enquanto o crime evolui, o poder público ainda age por impulso, como se cada operação fosse um ato de desespero — e não uma política de segurança planejada.
É como enxugar gelo com sangue.
Linha Dura, Sim. Mas com Inteligência.
A violência precisa ser enfrentada. E enfrentada com autoridade, não com hesitação.
Mas autoridade não é sinônimo de brutalidade.
Quem comanda precisa entender que força sem direção é só barulho.
De nada adianta celebrar recordes de apreensões se, no mês seguinte, as armas voltam a circular e as facções retomam o território.
O Rio precisa de operações, sim. Mas precisa também de coordenação, inteligência e continuidade.
Porque segurança pública não é espetáculo — é estratégia de Estado.
O Brasil Que Sangra em Círculos
Vendo tudo isso de fora, de um país onde polícia e Estado falam a mesma língua, não tem como não pensar: o Brasil virou um país em luto permanente.
A cada megaoperação, a mesma sequência — tiros, mortos, discursos, promessas.
E no fim, tudo volta ao ponto de partida.
Os criminosos voltam a se reorganizar.
Os políticos voltam a trocar acusações.
E o povo volta a enterrar seus filhos — uns fardados, outros com chinelo e bermuda.
É um círculo vicioso que só vai se romper quando a política deixar de usar o sangue como palanque.
Porque, sim, bandido se enfrenta com força, mas a violência se vence com inteligência.
E essa, infelizmente, ainda é a arma que falta no arsenal do Estado brasileiro.
Tiago Hélcias é jornalista com quase três décadas de vivência no front da notícia — do calor das ruas aos bastidores da política. Atua como apresentador, redator e produtor de conteúdo em rádio, TV e plataformas digitais. É pós-graduado em Marketing Político, especialista em Comunicação Assertiva e mestrando em Comunicação Digital em Portugal.
Fonte: https://tiagohelcias.blogspot.com/2025/10/rio-em-chamas-guerra-que-o-brasil-finge.html

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